Direito de Família na Mídia
As letras miúdas do casamento
26/03/2006 Fonte: No MínimoA história é verídica. Há um mês, o norte-americano Travis Frey foi preso no estado de Iowa, sob a acusação de seqüestro em primeiro grau. Até aí, nada de novo. O primeiro detalhe – para azeitar a história – é que a vítima do seqüestrador foi ninguém menos que sua esposa, Ruth Frey. Por cometer o "delito" de levar as filhas do casal a uma nova igreja, Ruth foi amarrada na cama e violentada três vezes seguidas.
Até aí, uma situação triste, peculiar, mas possível. Nada que surpreenda juizes, advogados cíveis ou delegados. O segundo detalhe – para apimentar a história – é que esse, provavelmente, não havia sido o primeiro ato de submissão (ou humilhação) sexual de Ruth. Após a prisão de seu marido, ela apresentou à justiça uma espécie de "pauta de conduta matrimonial" que Travis Frey lhe redigira, denominado Contract of Wifely Expectations (Contrato de expectativas quanto à esposa). Aqui a história fica doentiamente fascinante.
No contrato, Frey estipulava regras para lá de objetivas quanto ao comportamento social e, principalmente, sexual de sua mulher. Determinava, por exemplo, que Ruth deveria raspar-se "de três em três dias", incluindo aí os pêlos das "axilas, barriga, pernas e áreas púbicas (do umbigo ao ânus)". Determinava, também, o – digamos assim – "corte capilar" que Ruth poderia utilizar: no formato retangular, "centrado sobre a abertura da vagina, cuja altura não lhe exceda em mais de ¾", ou em qualquer formato, desde que "centrado sobre a abertura da vagina e cuja área não exceda a de um triângulo eqüilátero de altura equivalente a ¾ da abertura vaginal", ou, por último, "completa e totalmente raspado".
Quanto à indumentária, Frey determinava que sua mulher deveria se vestir de forma sensual, com saias que não ultrapassassem o joelho em mais de 5cm, "a não ser em idas à igreja", enfatizando que a calcinha era "sempre opcional, não precisando ser usada". Mais adiante, era estipulado que Ruth deveria tirar 20 fotos eróticas a cada duas semanas, tempo também que tinha também para escolher e apresentar o seu novo "apelido carinhoso (pet name)", com o qual seria chamada nos dias seguintes.
Para contabilizar a conduta de Ruth, Frey criou um sistema de pontuação chamado Good Behavior Days (Dias de bom comportamento), em que cada quesito valia pontos a serem convertidos em dias mais "brandos". Dentro dessa lógica, Frey concedia "3 pontos para a felação até a ejaculação", "7 pontos para o sexo anal, quando esperado" e "14 pontos para o sexo anal, quando não esperado".
Ruth alega nunca ter assinado o contrato. Mas ela e Travis Frey foram casados por nove anos.
Legislação brasileira exclui extravagâncias
No Brasil, os contratos de casamento ou pactos de união estável podem ser somente de ordem patrimonial. Há três opções possíveis: separação total de bens, união parcial de bens (que diz respeito aos bens adquiridos após o casamento) e união universal de bens (que diz respeito a todos os bens). Cláusulas quanto ao comportamento dos cônjuges são consideradas impraticáveis. Carmen Fontenelle, advogada especializada em Direito de Família e vice-presidente da OAB/ RJ, explica que "a legislação espelha o perfil de uma sociedade": "O americano tem uma herança mais fria, do anglo-saxão. O casamento, para eles, é quase uma empreitada empresarial. Para nós, a união é um vinculo acima de tudo afetivo. Por isso a lei interfere somente no que diz respeito ao patrimônio. Além disso, o Estado americano tem uma filosofia mais liberal. Lá, entende-se que o indivíduo tem capacidade de gerir a própria vida. Se a mulher e o homem estipulam que um contrato comportamental é bom para eles, a Justiça não interfere".
Foi pensando assim que o Estado americano não interferiu quando, em 1968, Jacqueline Kennedy e Aristóteles Onassis assinaram um contrato matrimonial de 168 cláusulas, onde determinavam, por exemplo, quantos dias por mês seriam obrigados a dormir juntos. Foi pensando assim que, em 2000, os atores Michael Douglas e Catherine Zeta-Jones firmaram um contrato pelo qual Douglas, de comportamento ninfomaníaco assumido, se comprometia a pagar uma multa de US$ 5 milhões para cada ato de infidelidade comprovado. E é pensando assim que o contrato do casal Frey, mesmo não sendo juramentado em cartório, não é ilegal sob a ótica americana. É a liberdade individual levada ao extremo da escravidão sexual.
Isso não quer dizer que casos pitorescos sejam uma exclusividade dos Estados Unidos. Entre as 18 varas de família do Fórum do Rio de janeiro, correm processos pelas razões mais variadas. Já houve briga pela partilha de uma televisão 29 polegadas; já foi exigido um estudo do perfil social de um cão pitbull para saber se ele era apto a lidar com crianças; já houve o caso de um casal que, após 11 anos sem contato, resolveu se reconciliar no dia do divórcio; e houve – acredite – o caso de um homem que compareceu ao Tribunal com um exame médico comprovando a própria ineficácia sexual. Anos antes, esse mesmo homem havia assumido a paternidade de uma filha que ele sabia não ser sua. Criou-a, educou-a e, quando a mulher entrou com um pedido de pensão após o divórcio, resolveu abdicar da paternidade. O juiz deu ganho de causa à mulher. O homem ficou impotente diante do parecer.
A impotência, aliás, era uma das principais razões para as anulações de casamento (o divórcio só foi instituído em 1977) durante a primeira metade do século 20. Os outros motivos mais comuns eram a "coitofobia", o "defloramento anterior da mulher", e o fato de um dos cônjuges ser portador de epilepsia, sífilis ou tuberculose, vistas como "moléstias graves e transmissíveis por herança". Todos esses eram considerados "erros essenciais sobre a pessoa do outro cônjuge", que prejudicavam "a honra e a boa fama do marido ou da esposa" (embora, na maioria das vezes, a honra do homem fosse muito mais importante que a da mulher).
Em 1936, uma esposa pediu judicialmente a anulação do casamento, alegando ser o marido impotente. A ação foi julgada improcedente, baseando-se no seguinte argumento da defesa: "É preciso que esta impotência seja para o coito de qualquer mulher, porque, se a falta de carícia da esposa para o marido motivar a falta de ereção do pênis, que funciona regularmente com outras mulheres carinhosas, a culpa é daquela e, portanto, não poderá ela pedir, por tal motivo, a anulação do casamento. È necessário também que a impotência seja anterior ao casamento: porque, se o homem antes de casar-se tinha amantes, freqüentava mulheres, o casamento não é anulável por erro de defeito físico de impotência." Como o marido "freqüentara outras mulheres", foi-lhe dado o ganho de causa. E a esposa teve que arcar com as custas do processo.
Os casos de impotência ou defloramento eram levados às ultimas conseqüências médicas, com exames minuciosos. Em 1952, um homem com hipertrofia do pênis foi examinado por seis "peritos", para chegar-se ao parecer de que seu órgão media "nove centímetros de comprimento quando flácido" e concluir que "em estado de ereção, o pênis do réu medirá muito mais". Dessa vez, a esposa que pedia a anulação do casamento não só perdeu a causa, como foi considerada culpada por tê-lo injuriado publicamente.
Na pista de Oscar Wilde
Mais – ou menos? – sorte teve uma esposa que conseguiu a anulação do matrimônio após provar que seu marido era "individuo pederasta". Ao introduzir o assunto, o juiz esclarecia que, "pelo geral, não têm os invertidos consciência de sua anormalidade e de sua inferioridade moral... e alguns deles chegam a pretender que o amor invertido é mais nobre que o amor sexual ordinário. Entre estes, Oscar Wilde". Em seguida, prossegue com as provas da contravenção: "Três meses depois (do casamento), já era hábito do réu sair de casa, pela manhã, passar de automóvel pelo apartamento de um de seus subordinados na repartição, velho uranista encarregado de aliciar-lhe as presas apetecidas. Tirava-o da cama. Muito manos, antes de entrar para o trabalho, iam fazer um passeio juntos, durante o qual se comprazia o réu em indicar ao companheiro as suas predileções... O réu, que tinha na repartição centenas de papéis para despachar e dezenas de pessoas a esperar por ele, passou dois dias afastado de seus deveres, entregue à faina da limpeza, em trajes menores, em companhia de seu parceiro e mais o encerador... Isso em plena lua de mel."
Mas não eram apenas os casos de "pederastia", "impotência" ou "defloramento" que ocupavam as páginas dos autos nos tribunais de família. Já havia, naquela época, julgamentos que fugiam à "normalidade" com argumentos um tanto fantasiosos: uma esposa tentou preservar seu casamento após dar à luz um filho "de raça preta", sendo ela e o marido de pele clara. Como defesa, a ré contou que "antes do casamento, e temendo que este não se realizasse, procurou a intervenção de um feiticeiro que duas amigas lhe indicaram". O parecer diz, em seguida, que "este feiticeiro, um preto de mau passado, com práticas anteriores de delito à honra, a inebriou com um chá e dela abusou". A anulação foi concedida.
Havia pedidos excêntricos, como o de um homem que alegava "profunda incompatibilidade de gênios e uma certa incompreensão da mulher no ‘entender as coisas’", ou de outro que se sentia humilhado pelo fato de a esposa ter ficado até tarde na boate Oásis em pleno domingo de carnaval. E havia, por fim, casos que já antecipavam o do americano Travis Frey, como o de um homem que torturava a esposa para, como citava o parecer, "poder dar pasto à sua libidinagem erótica", ou de outro, "um indivíduo de tão ignóbeis sentimentos, que tentou prostituir a própria mulher e, como proxeneta, explorar o comércio do seu corpo, cinco meses depois de casados." A anulação foi cedida em ambos os casos.
Herança histórico-social
Carmen Fontenelle conta que, quando o Código Civil brasileiro foi instaurado, em 1916, a mulher era totalmente subordinada ao homem: "Ser desquitada, na época, era pior do que ser uma meretriz, pois a mulher desvirginada e descasada não servia para nada". Segundo Carmen, a lei mudou, mas o comportamento masculino não evoluiu muito: "Contratos como o de Travis Frey, no Brasil, costumam ser silenciosos, não escritos. Isso tende a acontecer nas camadas mais pobres, mas não está restrito a elas. Muito mais que um fator material, o machismo é uma herança histórico-social."
O Código Civil brasileiro, mesmo após a revisão de 2002, ainda guarda algumas heranças que, aos olhos atuais, podem parecer curiosas. O adultério, por exemplo, só pode ser concretizado com pessoas do sexo oposto. Exatamente: ele não existe entre homossexuais. E mais: coito interrompido e atos anteriores ao sexo não configuram adultério. O advogado Rogério Mello, professor de Direito de Família na PUC-RJ, explica ser, por isso, muito mais comum o uso dos conceitos de "injúria" ou "infidelidade" para julgar casos de traição: "Até março do ano passado, o adultério era considerado crime. Um crime precisa de vestígios e a forma mais concreta de se provar o sexo é através do esperma. Já a infidelidade pode ser provada apenas com algumas testemunhas".
Mello aponta outra peculiaridade da lei: não há casamento gay: "Não há possibilidade jurídica de denominá-lo casamento. Existe, sim, um anteprojeto de lei da ex-deputada Marta Suplicy para legalizar a parceria civil de pessoas do mesmo sexo. Mas, hoje, o máximo que a lei permite é uma sociedade de cunho comercial, sem afeto". O afeto (ou desafeto), aliás, é uma constante nas varas familiares. Mello diz que o Direito de Família é atravessado pela subjetividade: "Ele é o ramo do Direito que menos usa a Lei; é muito mais baseado no bom senso".
Ou, como prova o contrato de Travis Frey, na falta dele.